A chave do lado de dentro

O homem fez sinal, o motorista parou o táxi, abriu a porta e pegou a mala que a mulher lhe estendeu.

O homem olhou a mulher, olhar demorado, beijo rápido, o motorista fechou a porta do táxi, ele foi, ela ficou.

Os olhos dela, úmidos de desesperança, acompanharam o táxi descendo a rua Haddock Lobo, cheia de árvores.

Duas da tarde, filhos na escola, ela atravessou uma, duas, muitas ruas. Revia o táxi chegando, a porta se abrindo, ele entrando, a mala pequena já lá dentro, a porta se fechando, ele indo, ela ficando.

Revia o táxi, imaginava o avião. Um pouco mais tarde, quatro, cinco horas, ele não precisando fazer sinal, a porta do avião à disposição dos senhores passageiros, ele entrando, ajeitando a maleta do jeito mais cômodo, buscava sempre o jeito mais cômodo, se sentando, lendo – jornal ou livro –, escrevendo. Carta não, com certeza. Anotações rápidas, inúmeras . O tempo ia ser curto, o tempo é sempre curto pro amor.

Ela atravessou uma duas, muitas ruas, revia o táxi, imaginava a saída do avião. E a chegada, muitas horas mais tarde. Aeroporto de outro país. Olhar rápido, beijo demorado, táxi, hotel.

No hotel, abrindo a mala, talvez ele se lembrasse dela, parada, olhos úmidos olhando o táxi descer a rua Haddock Lobo cheia de árvores. Lembrança rápida. Tirando os olhares, tudo era rápido entre os dois.

No hotel, abrindo a mala, lembrança rápida, ele veria outros olhos. Olhos úmidos de esperança olhando, pela janela, uma cidade provisória, paisagem para quinze dias.

A mulher atravessou as ruas devagar, sem perceber pessoas, ruídos. Sem medos.

Três da tarde, filhos na escola, sozinha, não mais do que na véspera, olhos úmidos de desesperança, ela parou diante de uma vitrine da rua Augusta. Vitrine conhecida: anéis, pulseiras, colares, cordões, chaveiros. Chaveiros.

Empurrou a porta de vidro com a ordem – empurre – e ficou olhando os chaveiros.

– Você deseja alguma coisa?

– Eu…

– Estes chaveiros são muitos bonitos, vou lhe mostrar alguns.

A mulher, os olhos não mais úmidos, só tristes, olhou um, dois, muitos chaveiros, todos de prata.

– Difícil escolher.

– É pra presente? – a vendedora quer ajudar.

– É. Vou mandar gravar.

– Nome grande? Quantas letras?

– Sete.

– Então é este, maior. Esse aí é pequeno, o nome iria desaparecer, um nome de sete letras é bem grande, acho que você deve levar este.

A mulher preencheu o cheque. A vendedora fez um embrulho com papel marrom, colou um selo com o nome da loja, viu a mulher se afastar e ficou pensando se aquelas sete letras seriam nome de namorado, marido, amigo, irmão, filho.

Saindo da loja, a mulher mandou gravar seu nome no chaveiro. Tornou a fazer o embrulho com papel marrom.

Em casa, guardou-o numa prateleira alta, fora do alcance das crianças, como costumava fazer com remédios e outros perigos. Pensou, olhos enxutos, tristes, que o embrulho tinha quinze dias pra ficar ali, ao seu alcance. O prazo da viagem. Tempo longo demais pra ela, que ia esperar. Curto demais pra ele, que ia amar. O tempo é sempre curto pro amor.

Quando ele voltasse, ah, quando ele voltasse, ela sabia, tinha tudo planejado.

Num restaurante português, ouvindo fados apregoando, num sotaque inconfundível – “de quem eu gosto, nem às paredes confesso” –, ela lhe confessaria: estava feliz com sua volta.

– Volta? – ele estranharia.

Ela explicaria. Maneira de dizer. Não se expressara bem. Sabia que ele não tinha voltado. Ainda. Estava feliz com a chegada, era isso. Era só uma chegada, e ela estava muito feliz. Estava ali, na frente dele, não estava? Felicidade era só isso. Isso tudo. Que importavam as circunstâncias? Estava explodindo de felicidade. Estavam ali, um na frente do outro, olhar demorado, aeroportos fazendo parte do passado, táxis também, rua Haddock Lobo, árvores, olhos úmidos.

– Você está muito bonita.

– Estou feliz.

– Vamos embora? Estou cansado.

Ela lhe pediria pra esperar um pouco mais. Só um pouquinho. O tempo de tirar da bolsa o embrulho marrom e dizer:

– Eu tenho um presente pra você.

Ele, sem tempo pro espanto:

– Pra mim? O quê?

– Abre.

Ela confirmaria, feliz e infeliz: o nome era dela, sim, e a chave também. Principalmente a chave.

– Como?

Ele poderia vir quando quisesse. Só chegar e abrir. Ela estaria esperando, sempre.

Ele se levantaria, chaveiro no bolso, papel marrom abandonado na mesa, o sotaque dos fados cada vez mais longínquo.

Depois de quinze dias – curtos pra um, longos pro outro –, os dois num restaurante sem música, ele falou primeiro:

– Pensei muito em você.

– Eu também pensei em você.

– Como é que você está?

– Estou bem.

– E como é que você ficou, aqui em são Paulo?

–  Fiquei bem.

E, depois de um olhar demorado:

– Você acredita?

Ele não acreditava, via isso no olhar dele, não se demorando nem no rosto dela, nem nos dois copos de conhaque. Mesmo assim, ela falou. Tinha trabalhado, mais do que imaginara. Saído, visto alguns amigos, se distraído. O mundo não havia acabado. Tinha continuado, tinha continuado. Ela também continuara Tinha chorado, sim. Menos do que imaginara. Nem sobrara muito tempo: filhos – escola, banhos, refeições, roupas, conversas, brigas, choros – trabalho, compras, casa, casa.

– Você está se queixando – ele interrompeu.

Não estava. Tinha vivido, ele não estava percebendo? Tinha continuado, contra todas as previsões. Continuado por quinze dias. Um tempo comprido, cumprido.

– Você é a mulher da minha vida. Só te peço um pouco mais de paciência.

Paciência, claro. Claro, paciência. Teria, continuaria tendo.

– Vamos embora? Estou cansado.

Ela lhe pediu pra esperar um pouco mais. Só um pouquinho. O tempo de tirar da bolsa o embrulho marrom e dizer:

– Eu quero te mostrar uma coisa.

– O quê?

Ela abriu o embrulho.

– Um chaveiro?

– É. E uma chave. Comprei quando você viajou, naquele dia mesmo. Mandei gravar meu nome. Meu apelido. É como você me chama. Depois, mandei fazer uma chave da porta lá de casa e guardei, tudo junto, quinze dias.

Ele a olhava, em silêncio.

– Eu ia te dar esse chaveiro hoje. Hoje ou qualquer outro dia.

– E não vai, mais?

– Não. Quero te confessar uma coisa: os quinze dias foram tantos, o presente agora é pra mim. Quem abre minhas portas sou eu. Só. Minhas chaves são minhas.

– Tanta mudança em quinze dias?

– Não foram só quinze dias.

– Como?

– Já te disse. Foram tantos.

Ela continuaria esperando, o amor existindo, mas as chaves da casa estariam do lado de dentro. Não só chegar e abrir.

Estavam ali, na frente um do outro, e felicidade não era isso. As circunstâncias pesavam. Ali, um na frente do outro, olhar demorado, aeroportos no passado, táxis também, árvores, olhos úmidos, ela não explodia de felicidade. Ele não tinha voltado, só chegado, era pouco. Pensou alto:

– Chegada não abre portas.

– O quê? – ele não entendeu.

Pegou o chaveiro, colocou na caixa, embrulhou no papel marrom, guardou na bolsa. Lembrou-se de um fado ouvido há muito tempo.

– Sinto falta de música.

– Você é uma mulher surpreendente.

– Por sentir falta de música?

Eles se levantaram. Enquanto saíam, ele lhe disse:

– Um dia, quero te dar um presente.

Respondendo ao olhar dela, continuou:

– Talvez demore, mas eu sei, eu sinto que vou te dar.

– O quê?

– Acho que você sabe.

Ela sabia. O chaveiro não teria o mesmo nome, a chave seria outra. Ninguém tem portas com fechaduras iguais.

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