Clara Nunes, muito mais do que “uma cantora de samba”

No começo de sua carreira em disco, Clara Nunes teve de lutar para não ser cantora de boleros. Conseguiu. Mas muito mais ainda ela lutaria, depois, para não ser considerada apenas “cantora de samba”, “cantora de macumba”, “cantora-candomblé”. Morreu sem que muita gente se tenha dado conta de que ela foi muito mais que isso.

Queria ser “uma cantora popular brasileira, podendo cantar de tudo” – segundo ela mesma disse, em 1980. Tudo, no caso, era aquilo em que ela acreditasse – e ela acreditava na música como “uma aproximação com o povo, a música brasileira, a dança brasileira”; acreditava que sua força estava nas suas raízes populares e era para essas raízes que ela procurava se voltar cada vez mais; acreditava que seu canto era “um dom dado por Deus”; tinha “uma função social”, e que, por isso, sua voz tinha que ser usada para falar “do sentimento do povo, da problemática social, na linguagem do povo”.

Cantou de tudo – cantou forró, coco, marcha-rancho, samba-canção, samba, partido alto, maxixe, valsa, canção, baião, xaxado, congada. Foi “uma cantora popular brasileira”, como queria. Mas talvez só depois da morte ela se livre totalmente daqueles rótulos que recusava.

Longe dos boleros

Discografia Clara NunesPrimeiro não foi propriamente um rótulo, mas uma imposição. A gravadora – a mesma Odeon, para quem ela trabalharia até o final da vida – quis transformá-la numa “Altemar Dutra de saias”, e por isso escolheu, para o seu LP de estréia, em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes, um repertório de boleros. Clara sempre fez questão de ignorar, depois, a existência desse disco – que, de resto, nunca mais foi relançado e está fora de catálogo. (“Esse disco felizmente não aconteceu e está esquecido”, disse ela em 1976.)

Como Elis Regina, obrigada no início da carreira a gravar calipsos e baladas na tentativa da gravadora da época de criar uma “nova Cely Campello”, Clara iria, nos discos seguintes, procurar o seu próprio caminho. No seu caso, o seu próprio caminho começou a ser encontrado logo depois do LP de estréia. Em 1968, foi a intérprete, no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da Rede Excelsior de Televisão, do samba “Você passa e eu acho graça”, de Ataulfo Alves e Carlos Imperial. O compacto com essa música vendeu 80 mil cópias, e levou ao segundo LP, que tinha justamente o nome da música de Ataulfo.

Vieram depois A beleza que canta (1969), uma viagem à África, onde estudou folclore, música e danças que tanto influenciaram a nossa música (e a arte da própria cantora, em especial), e ainda os LPs Clara Nunes (1971), Clara Clarice Clara (1972) e Clara Nunes (1973). Os discos tinham vendagens sempre crescentes, mas o grande estouro viria a partir do LP Clara Nunes, ou Alvorecer, de 1974; vendeu mais de 400 mil cópias, um recorde até então inédito entre as cantoras brasileiras – acima dela, naquela época, só havia Roberto Carlos. O grande sucesso continuou com Claridade (1975) e Clara, conhecido como Canto das Três Raças, de 1976 – cada um deles vendeu mais de 600 mil exemplares.

Mais ecléticos, mais ricos

Foi aí, em meados dos anos 70, no auge da popularidade, que ela começou a lutar contra a pecha de “cantora-candomblé”, segundo expressão que ela própria usou. Seus discos seguintes seriam intencionalmente mais ecléticos, e mais ricos, aproveitando melhor a variedade dos ritmos brasileiros. Gravou toadas sertanejas, forrós, congadas; gravou desde Caetano Veloso a Sivuca, desde Chico Buarque de Hollanda a João do Vale, desde Paulinho da Viola a Adoniran Barbosa – mantendo, é claro, em cada LP, várias faixas dos compositores de morro, dos sambistas tradicionais, desde os medalhões geniais como Cartola e Nelson Cavaquinho a nomes na época menos conhecidos do grande público, e que ela fez bem mais conhecidos, como Dona Ivone Lara, Monarco, Candeia, e também Baianinho, Xangô da Mangueira, Romildo e Toninho.

Em todos os seus discos, especialmente a partir de Alvorecer, a voz bonita e firme de Clara Nunes contou com o acompanhamento dos melhores instrumentistas do samba – gente como Dino, Rafael Rabelo, Joel do Bandolin e Deo Rian, para citar só alguns.

Apesar da qualidade, todavia, seus LPs começaram a vender menos, a partir de 1977. Assim, a vendagem antecipada (correspondente aos pedidos feitos pelos lojistas, antes mesmo de o disco ser lançado) de seus LPs caiu dos 300 mil de 1976 para os 80 mil de Nação, 16º e último LP, de setembro do ano passado.

Muito possivelmente isso foi reflexo da crise geral da economia do País e da indústria de discos como um todo. (Gente como Chico Buarque de Hollanda e Rita Lee, por exemplo, viram as vendas de seus discos despencar, de 1980 para 1982.) E talvez reflexo da crise do samba, em particular – que, quase esquecido no início dos anos 70, teve um crescimento vertiginoso na metade da década e hoje pouco se ouve nas rádios.

Pois Clara Nunes – mesmo sendo uma grande e boa cantora popular brasileira – não conseguiu se libertar da pecha de “cantora de samba”. Infelizmente para todos os que sequer ouviram seus discos – e não gostaram.

             A historinha por trás do texto

Clara Nunes morreu de uma dessas mortes imbecis, que não dá para a gente entender. Não tinha completado 40 anos; foi fazer uma operação de varizes numa clínica do Rio, houve problema na anestesia – morreu no dia 2 de abril de 1983, no auge da carreira, com a vida inteira pela frente.

Foi num sábado. Naquele tempo, o Jornal da Tarde, onde eu trabalhava como sub-editor de Reportagem Geral e, nas horas vagas, escrevia sobre música brasileira, não saía aos domingos (assim como os jornalões O Estadão, a Folha e O Globo não saíam às segundas); e então Cesar Giobbi, então pauteiro da Variedades, encomendou um texto para o jornal de segunda-feira, uma avaliação da obra dela, uma matéria de apoio à principal, que seria a reportagem propriamente dita sobre ela, a morte, o enterro. Não conhecia muito bem os discos da Clara, mas me meti a ouvi-los e a ler sobre ela no sábado e no domingo. Não é um texto lá especial, mas acho que pelo menos foi digno – era o mínimo que Clara merecia.

Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, 2ª. edição, de 1998, em dezembro de 1997 a EMI – o novo nome da gravadora Odeon – reeditou a obra completa de Clara, em 16 CDs remasterizados em Abbey Road.

6 Comentários para “Clara Nunes, muito mais do que “uma cantora de samba””

  1. Clara Nunes ficou na história da Música Popular Brasileira…Clara Nunes será para sempre a Deusa do Samba…
    Mulher Guerreira…Do Canto das Três Raças…Do Conto de Areia…Como é Grande e Bonita a Natureza de Clara…do Ijexá…A Deusa dos Orixás…

  2. Linda voz, era uma pessoa de muita luz para ficar neste mundo, sua claridade e espiritualidade ofuscava demais, ela agora canta para os anjos pois como era um anjo voltou para seu lugar.
    Muitas saudades !!! Igual a ela nunca mais!

  3. Clara é uma fonte inesgotável. São tantas cantoras que “bebem” da Clara. E nós que ouvimos e gostamos do canto da Guerreira nos deliciamos com o belo texto.
    Eparrê!

  4. Clara mestiça
    Sem dúvida outra igual não terá mais , Clara Nunes será sempre lembrada em quanto meu coração bater eu vou falar e elevar seu nome ..
    Eu cresci ouvindo ela e foi toda minha infância , minhas tias ouvia ela quase todos os finais de semana e ela já vem comigo …
    Obrigado por vocês existirem e sempre elevar o nome da nossa eterna Claridade.
    Bjs em seus corações..

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