Raul, com a força instintiva e rebelde do jovem Elvis

Raul Seixas pede aos iluminadores que dirijam as luzes para a platéia, que grita seu nome compassadamente. Observa a multidão, e diz: “Que beleza. E todo o mundo aqui é rocker? Long live rock’n’roll”. Em seguida, didaticamente, explica: “Praticamente o rock’n’roll começou em 41 com um cara chamado Arthur ‘Big Boy’ Crudup, que fez a cabeça de uma criança chamada Elvis Presley. Esse rapaz pela primeira vez na história transformou o blues em rock’n’roll. E a coisa era mais ou menos assim:” – e então Raul, acompanhado pelo piano de Miguel Cidras e pela guitarra de Tony Osanah, canta “So glad you’re mine”, de Arthur Crudup.

A cena, acontecida no dia 26 de fevereiro deste ano (1983), no ginásio do Palmeiras, foi gravada, e é a última faixa do LP Raul Seixas. E, ao se ouvir essa faixa, é impossível deixar de lembrar a parte da história que Raul Seixas não contou ao seu público, no ginásio do Palmeiras. Arthur Crudup, bluesman negro do Mississipi, fez a cabeça do garoto Presley contrariando violentamente a vontade dos pais de Elvis, brancos, religiosos, fiéis seguidores da Igreja Pentecostal e, é claro, racistas como toda boa família do Sul dos Estados Unidos naquela época. (“Eles ralhavam comigo, em casa, por ouvir gente como Crudup” – contou Presley numa entrevista. – “Diziam que era música pecaminosa.”). Pois foi justamente com uma música de Arthur Crudup, “That’s all right”, que Elvis gravou o seu primeiro disco comercial, em 1954, e criou o rock’n’roll.

raulA última faixa do LP de Raul Seixas – como várias outras do disco – procura manter-se fiel às origens do rock. Músico de sólidas raízes roqueiras, profundo conhecedor da historia do rock, adesista de primeira hora dessa música branca de raízes negras (aos nove anos, já gravava rocks em um gravador caseiro; foi um dos primeiros integrantes do Elvis Rock Clube de Salvador, aos 16 anos de idade), Raul faz um som forte, instintivo, sensual e rebelde. Exatamente como eram as primeiras gravações de Presley. E, portanto, incômodo a muitos ouvidos.

Não é de se estranhar, assim, que dona Solange Hernandes tenha, na semana passada, recorrido ao ministro da Justiça, na tentativa de proibir três das músicas do disco Raul Seixas, depois que elas foram liberadas pelo Conselho Superior de Censura. Se vivesse em Memphis, em 1954, dona Solange certamente teria tentado censurar os primeiros discos de Elvis. Estranha à dona Censura o primitivo sensualismo, a quase inocente malícia, a limpidez vigorosa da juventude deste roqueiro de quase 40 anos que vive ainda em 1954, muito antes de Elvis ir para o Exército e voltar adocicado, polido, bom moço casadoiro.

Raul Seixas, ao contrário de seu grande ídolo, não perde o vigor. Continua – felizmente – o mesmo roqueiro de sempre. Tão vigoroso quanto dez anos atrás, quando lançou Krig-ha, bandolo, seu primeiro LP solo, avisando ao ouvinte ser “a mosca que pousou na sua sopa”, “a mosca que perturba o seu sono”. Há momentos suaves, neste seu primeiro LP para o Estúdio Eldorado. Como a faixa “Lua cheia”, em que ele canta com acompanhamento de coro, cordas e sanfona, lembrando docemente que “luar” é seu nome ao avesso. Ou “Segredo da luz”, balada suave com acompanhamento de piano, falando que as estrelas brilham como todos nós. Ou como “Coisas do coração”, um leve e gostoso country. Ou até mesmo “Coração noturno”, certamente a música mais densa e desconcertante do LP, que fala do nascimento de mais um dia, visto por um homem de coração “companheiro de absurdos, no noturno, no soturno”, que “bate quatro por quatro sem lógica e sem nenhuma razão”.

Claro, há muitos momentos suaves. Mas a base do disco é, sem dúvida, a força do rock. E, para cantar a força do rock, Raul Seixas – remando contra a maré atual de sofisticações desnecessárias, teclados aos montes, sintetizadores, computadores – precisa apenas do básico, do fundamental: a voz, piano, violão, guitarras, baixo, bateria.

Com o básico, o fundamental – e muito pouco mais, como um levíssimo toque de sintetizador em uma faixa, uma correta entrada de metais num ou noutro momento – Raul nos brinda com algumas maravilhas. Como “DDI (Discagem Direta Intereatelar)”, que, como “Coração noturno”, já está tocando muito no rádio. O telefonema de Deus para os homens que criou “milhões de anos atrás” é irresistível: Deus está bravo com a inatividade, a preguiça e o comodismo dos seres que ele criou à sua “imagem e perfeição”: “Por favor, não deixem a peteca cair. Não é só novena, terço e oração; em vez de resmungar eu quero é ver vocês em ação”. (Depois, Deus avisa por que vai desligar: “O telefone tá caro, eu já falei demais, ‘brigado pela atenção”‘.)

O mesmo estimulo à ação de cada pessoa é dado em outro dos rocks do disco, “Aquela coisa”: “É preciso você tentar. Mas é preciso você tentar. Talvez alguma coisa muito nova possa lhe acontecer”.

As três músicas que dona Solange Hernandes quer proibir são “Não fosse o Cabral”, “Quero mais” e “Babilina”. “Não fosse o Cabral” é outro rockão básico, de andamento muito rápido, acompanhado por piano, guitarra, baixo e bateria; seu tema faz lembrar um pouco antecedentes ilustres como “Cultura e civilização”, de Gilberto Gil, e “Partido alto”, de Chico Buarque de Hollanda – uma saudabilíssima, bem-humorada mas violenta crítica a alguns aspectos do que ele vê no Brasil (“miséria é supérfluo, o resto é que tá certo; assovia que é pra disfarçar”, diz Raul, para depois completar: “nós não  temos história, é uma vida sem vitória, eu duvido que isso vai mudar. Falta de cultura pra cuspir na estrutura – e que culpa tem Cabral?”)

“Quero mais”, que Raul chama de reggae-baião, é um divertido e safado diálogo entre ele e Wanderlea, a ex-Ternurinha da Jovem Guarda, com bons achados como este: “eu sou que nem um vira-lata vagabundo, meu maior prazer no mundo é ter você pra farejar”. Dona Censura deve ter achado contrário à moral e aos bons costumes; bom é “O Povo na Tevê”.

E, finalmente, há “Babilina”, talvez a melhor de todas as faixas do LP, um rock delicioso, agradável, dançante, que nos remete diretamente à obra de gênios como Chuck Berry (o próprio som do nome da música se aproxima muito de “Mabellene”, velho sucesso do músico americano), com uma letra no mínimo provocativa, talvez até polêmica, falando do namorado que pede para a namorada largar o emprego e ficar em casa, que é o seu lugar. (Acidentalmente, o emprego de Babilina é um bordel.) Raul termina essa faixa cantando em inglês, o que serve de ponte para a faixa seguinte, a última do disco, “So glad you’re mine”, de Crudup, o bluesman negro que os pais de Elvis não queriam que ele ouvisse. Dona Solange não quer que ninguém ouça o disco. Tem sua lógica – uma lógica “sem lógica e sem nenhuma razão”, como diria Raul Seixas. Mas a censura passa, a arte fica.

Uma historinha

Quando convidei o Edmundo Leite para colaborar no site 50 Anos de Textos, ele respondeu que seria difícil, porque todo o tempo que tem, fora as horas no trabalho no estadao.com.br, está usando na redação de seu livro sobre Raul Seixas. Edmundo tem material para uns dois Guerra e Paz. Quando terminar, será – tenho a certeza disso – a obra definitiva sobre Raul.

Dias depois, ele me mandou um e-mail: “Minha contribuição no momento é um texto seu. Não sei se tem ele em seus arquivos, mas aqui vai.” E me passou o meu texto sobre o disco do Raul que o Estúdio Eldorado lançou em 1983.

E me explicou:

“Quando fiz um especial sobre o Raul no Estadão 2003 – que acabou sendo o embrião da idéia de fazer a biografia -, digitalizei vários textos do arquivo do jornal, entre eles o seu sobre o disco do Raul. O especial do Estadão se perdeu – como quase tudo do período 1995-2005 da internet do Grupo Estado. Um crime. É como se tivessem jogado parte do arquivo do jornal fora. Por isso hoje é fácil um monte de gente achar que está fazendo grandes inovações e até inventando a internet do Grupo Estado, pois não há memória de nada do que foi feito antes. Mas arquivei seu texto no meu acervo sobre o Raul. E por isso ele está aí.”

Edmundo Leite é um dos jornalistas mais talentosos das novas gerações com quem já trabalhei. É de uma formação interessante – ele já começou no jornalismo na era da internet. Entende profundamente a linguagem da internet.

Quando resolvi criar este site, ele me disse que, desde que leu no 50 Anos de Filmes meu texto sobre Roberto Carlos, percebeu que eu não iria ficar só com os filmes. Interessante: o Edmundo previu o 50 Anos de Textos antes que eu mesmo tivesse a idéia de fazê-lo. Coisa mesmo de quem conhece internet tanto quanto conhece jornalismo.

2 Comentários para “Raul, com a força instintiva e rebelde do jovem Elvis”

  1. Tem pessoas que vivem á frente de seu tempo.
    Raul foi uma dessas pessoas.
    O maluco beleza mais lúcido que o Brasil conheceu.ViVa Raul Seixas
    Sérgio Valeu como uma aula.
    Obrigada
    Date

  2. Pô, Date querida, que legal que você leu e gostou e se deu ao trabalho de comentar. Espero que você encontre tempo – no meio do zilhão de coisas que você faz – para vir aqui de vez em quando.
    Um grande abraço, e obrigado.

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